Contos de um Mundo com Esperança
Lisboa, Texto Editora, 2003
A tolerância, o direito ao ensino, a solidariedade, o preconceito ou o direito à diferença são apenas alguns dos temas abordados nestes sete contos infantis. Pode parecer difícil explicar às crianças assuntos tão complexos como estes. Mas não é em vão que estes autores escrevem para os mais pequenos; com uma linguagem clara e um estilo simples, tornam acessíveis mesmo os conceitos, à partida, mais ousados.
Um projecto desenvolvido em parceria com a Amnistia Internacional e que a Texto Editora se orgulhou de apresentar, fala das crianças e dos seus direitos e de um mundo de muitas cores que a todos nós cabe construir.
Os sete contos incluídos neste livro, cujas ilustrações são da autoria jovem Joana Gomes, foram escritos por Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada, José Jorge Letria, Luísa Ducla Soares, Maria Alice N. Sarabando, Maria do Céu Ferro, Margarida Fonseca Santos e Matilde Rosa Araújo.
Um pombo curioso; O homem que ficou sem sono; A História de um herói contada em português; O umbigo de Umbelina; Um nome, um sentido; Um tribunal na sala de aulae Urpi e Lua Cheia são contos que convidam a uma viagem pelo imaginário infantil, guiada por alguns dos mais representativos autores portugueses.
"O homem que ficou sem sono ou a história de um herói contada em português" de José Jorge Letria
«Era uma vez um homem que um dia ficou sem sono. Queria dormir, mas não conseguia, apesar de sempre ter dormido bem. Quando fechava os olhos, não lhe saía da cabeça a tristeza que havia no olhar das crianças que se apinhavam junto da porta da casa onde morava e trabalhava. Era um homem bom que gostava do que fazia e que fora educado para obedecer às ordens dos seus superiores, estivesse onde estivesse. Nunca lhe passara sequer pela cabeça a possibilidade de um dia vir a infringir essa regra.
Esta história é verdadeira e aconteceu poucos dias antes de começar o Verão do ano de 1940. Ainda há muita gente viva que se lembra bem desse homem e daquilo que ele fez, deixando de pensar em si e pensando nos outros e na sua salvação. O homem era diplomata e nascera no norte de Portugal. Chamava-se Aristides de Sousa Mendes, era casado e tinha vários filhos. A sua carreira como cônsul levou-o até à cidade francesa de Bordéus, onde lhe chegaram as primeiras notícias do começo da Segunda Guerra Mundial quando as tropas alemãs atacaram a Polónia e a Inglaterra se opôs a essa agressão, em defesa da liberdade e da democracia, declarando que faria frente, pelas armas, aos agressores.
O homem era pessoa de bem e defensor da paz. Não podia aceitar a ideia de que alguém pudesse ser perseguido, torturado e morto só por ter ideias políticas diferentes ou outra religião. Fora educado para a tolerância e por isso respeitava os direitos dos outros. (...)
Três dias bastaram para que o cônsul Aristides de Sousa Mendes abrisse a milhares de refugiados as portas para a liberdade, desobedecendo a Salazar e ao regime que ele dirigia. Por isso foi prontamente banido da carreira diplomática e proibido de exercer qualquer actividade profissional, morrendo na miséria em 1954, com os filhos dispersos por países como os Estados Unidos, onde puderam estudar e seguir as suas carreiras. Num dia quente de Junho de 1940, no Rossio, em Lisboa, um menino de cabelo loiro perguntou aos pais, enquanto estes procuravam uma pensão ou um hotel onde se pudessem instalar até conseguirem arranjar bilhetes num barco ou num avião para Nova Iorque:
— Como é que se chama aquele senhor que, em Bordéus, nos passou os vistos para podermos chegar a este país?
O pai, não contendo uma lágrima comovida, respondeu-lhe:
— Chama-se herói, filho. Quem faz o que ele fez por nós só pode ter esse nome.
Ainda não houve um grande realizador de cinema que fizesse um filme sobre esta história verdadeira, à semelhança do que Steven Spielberg fez com Oskar Schindler, mas pode ser que ainda venha a ser feito. Nunca é tarde para celebrar os feitos dos heróis.
Naquelas noites quentes de Junho de 1940, havia em Bordéus um português que não conseguia dormir. Não lhe saía da memória a aflição das crianças que queriam ver abrir-se a porta que as deixasse seguir o caminho até à liberdade. Essa porta abriu-se e por ela passou uma réstia de luz, desenhando no cetim negro do céu, entre as estrelas, a linda palavra ォEsperançaサ, escrita em português como esta história verdadeira que é sempre bom contar e recontar.
Porquê? Porque é sempre possível que a tragédia volte a acontecer, onde e quando menos se espera.»
José Jorge Letria
Contos de um Mundo com Esperança
Lisboa, Texto Editora, 2003