domingo, 15 de fevereiro de 2009

Comunidade de Leitores


Escrita por Lídia Valadares propositadamente para esta ocasião, a história de Arlequim foi apresentada pela autora nas Bibliotecas Escolares de Lamego n.º1 e de Sucres.
Com Arlequim, Lídia Valadares levou-nos a viajar no tempo e no espaço. Nesta viagem nada foi esquecido, imagens, músicas e danças criaram um cenário tipicamente veneziano.
A história de Arlequim é um hino à amizade, à partilha e à generosidade.
É com generosidade que Lídia Valadares a partilha connosco.


Arlequim

A história que vou contar passou-se há muitos anos, em Itália, aquele país da Europa que tem a forma de uma bota de cano alto. Pois esta história teve lugar, exactamente, em Veneza, uma das mais belas e originais cidades do mundo. Esta cidade, situada a nordeste da Itália, isto é, mesmo no cimo do cano da bota, do lado direito, foi construída sobre dezenas de ilhas pequenas, muito próximas umas das outras. Ora, já estão a imaginar o efeito, não estão? Os canais de água que separam as ilhas onde estão as habitações são o equivalente às nossas ruas de cidade. São uma espécie de ruas de água. Só que, nestes canais, não circulam carros, nem autocarros, como é evidente, mas vários tipos de barcos, embora os mais típicos desta zona sejam as gôndolas. Há também algumas pontes para se poder atravessar de uma margem para a outra. E tudo isto dá um aspecto raro e magnífico a este local, parece uma cidade de um conto de fadas!

Agora, que já estamos a ver o sítio, vamos à lenda.

Dizem que tudo se passou na época do Carnaval. Como já devem saber, o Carnaval de Veneza é muito famoso. As pessoas disfarçam-se para sair à rua, usando as célebres máscaras venezianas e trajes muito elegantes, dos séculos XVII e XVIII. Durante vários dias, realizam-se desfiles pela cidade e, à noite, há faustosos bailes em salões. Ninguém se conhece, tudo anda disfarçado, fingindo ser príncipe ou princesa, rei ou rainha, dama da corte, cavaleiro da noite, Pierrot, fada, uma personagem célebre, enfim, o que deseja ser, por algum tempo… Parece o reino da fantasia!
Ora, num imponente e belíssimo palácio de Veneza, mesmo no final do Canal Grande, a principal “rua de água” de Veneza, vivia uma condessa muito rica que, todos os anos, no Carnaval, organizava um magnífico baile de máscaras, para o qual convidava todos os rapazes e raparigas da cidade. Fazia, apenas, uma exigência: todos os convidados tinham de ir mascarados. Era premiado aquele ou aquela que melhor se apresentasse. Era uma festa e uma azáfama! Durante vários dias, as mães dos jovens esforçavam-se por confeccionar os mais belos fatos, para que os seus filhos pudessem ganhar o prémio. Era uma alegria indescritível. Bem, mas não para todos… Arlequim estava tristíssimo, pois era muito pobre e a sua mãe não poderia fazer-lhe o traje. Sim, chamava-se Arlequim, poderia ser Arlexico, Arlezé, Arletó, mas não, era Arlequim, um nome muito curioso, não acham?

Os amigos andavam preocupados com a situação do Arlequim, pois gostavam muito dele. Era um rapaz muito simpático, divertido, sincero, leal, tolerante, generoso e, portanto, muito estimado pelos companheiros.

- Não estejas triste! – animava-o Giulia com ternura.

- Tens de vir connosco, Arlequim! – dizia Francesco, inconformado.

- Como? – perguntava Arlequim – Os trajes são luxuosos e, como vós sabeis, a minha família não tem dinheiro para isso.

- Mas tem uma alma mais nobre do que a de muitos ricos! – consolava-o Valentina, com convicção e doçura.

Arlequim sorria com melancolia e gracejava:

- Obrigado, meus amigos, mas não posso ir vestido com a alma!

E da boca dos seus amigos saíam palavras doces, macias, quentes, daquelas que nos beijam, nos abraçam e nos aconchegam, quando estamos tristes.

Como já era tarde, abandonaram a Praça de S. Marcos, onde se encontravam, e dirigiram-se para suas casas.

Pietro, Marco, Leonardo e Martina faziam juntos o trajecto, pois moravam próximos, mas caminhavam em silêncio, pensativos, com o coração anoitecido. Atravessaram a Ponte de Rialto, mas não riam, nem alto, nem baixo, não estavam para graças. Mais adiante, atravessaram a Ponte dos Suspiros e suspiraram:

- Temos de fazer alguma coisa, temos de arranjar uma solução para que o Arlequim possa ir ao baile. Ele está sempre pronto a ajudar-nos e a amizade tem de ser recíproca.

Sem o Arlequim saber, no dia seguinte, reuniram-se todos na Ponte dos Descalços (mas iam calçados) e, como várias cabeças pensam melhor do que uma só, num verdadeiro trabalho de equipa, procuraram resolver aquele problema.

- Então, descobriram alguma solução? – perguntou Marco, ansioso.

- Olhem, tive uma ideia! – anunciou Pietro, que era o mais expedito – E se lhe dermos os restos dos tecidos que sobrarem dos nossos fatos?

- Os restos?! Francamente, Pietro, que disparate! Para que lhe serviriam os restos?

Seguiram-se alguns segundos de silêncio em que todos remoeram a sugestão apresentada. De repente, Martina, sempre mais ponderada, declarou:

- Não me parece má ideia. Com os restos, sempre poderá fazer um traje qualquer, mesmo que seja mais simples. O que interessa é ir connosco ao baile. Além do mais, não me ocorre outra hipótese.

- Não se esqueçam que, naquela família, o que falta em dinheiro, abunda em vontade, persistência e imaginação. E eu tenho a certeza de que eles vão conseguir fazer qualquer coisa - acrescentou Pietro.

E a ideia foi posta em prática.

A mãe do Arlequim observou os retalhos com muita atenção, pensou-os demoradamente, estudou-os com muito amor e, com criatividade e bom gosto, imaginou um modelo genial: cortou vários losangos da mesma dimensão, combinou-os habilidosamente e conseguiu fazer uma fantasia multicolorida e deslumbrante. Nunca se tinha visto nada deste género!

E, assim, Arlequim pôde entrar no palácio, acompanhado pelos seus amigos, que o contemplavam fascinados e orgulhosos. Realmente, o seu fato parecia ter saído das mãos de um costureiro famoso ou de um pintor célebre que tivesse pintado cuidadosamente muitos losangos de várias cores! Todos o apreciavam extasiados.

A condessa, quando o viu no seu salão, demorou longamente o seu olhar naquela obra de arte e, simultaneamente admirada e maravilhada, dirigindo-se a ele, perguntou-lhe:

- Como arranjaste esse traje tão lindo?

Arlequim, com alegria e emoção, respondeu:

- O meu fato foi feito com a bondade dos meus amigos e com o coração da minha mãe.

E, nesse ano, foi precisamente Arlequim quem ganhou o prémio por se ter apresentado com o fato mais bonito e original.

Diz-se, ainda, que dançou toda a noite com a filha da condessa, uma jovem lindíssima, com cabelos cor-do-sol, olhos cor-do-céu e a alma cor-da-lua que ilumina a maior escuridão.
O final? Soltem a vossa imaginação e adivinhem-no!...

Lídia Valadares
01/02/2009